
A ação Saúde e Brincar do Instituto Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz) se destaca por promover um cuidado integral e humanizado às crianças hospitalizadas, considerando não apenas os aspectos físicos da saúde, mas também as dimensões psíquicas, sociais e culturais do paciente. Com uma abordagem multidisciplinar que valoriza a integralidade do cuidado, reconhecendo a importância da brincadeira e do acolhimento no processo de recuperação, o projeto não só contribui para a recuperação física das crianças, mas também para o fortalecimento de sua autoestima e vínculos sociais.
Para entender melhor como essa prática se concretiza no cotidiano hospitalar e como ela impacta a vida das crianças e suas famílias, conversamos com a médica pediatra Roberta Tanabe, coordenadora do núcleo Saúde e Brincar, mestre e doutora em saúde da criança e da mulher (IFF/Fiocruz) e Anita Silva Paez, psicóloga, mestre e doutora em saúde da criança e da mulher (IFF/Fiocruz), que compartilham suas experiências e visões sobre o impacto dessa abordagem no hospital.
Contextualizando um pouco a ação Saúde e Brincar do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), você poderia explicar como ela funciona? Qual seu objetivo principal e a quem ela se dirige?
Para contextualizar as ações do Núcleo Saúde e Brincar é preciso recuperar a história e as motivações que deram origem ao trabalho. No início dos anos 90, já estava em curso uma mudança no perfil epidemiológico com aumento progressivo das condições crônicas de saúde entre o público pediátrico, e parte dessas crianças permaneciam desacompanhadas durante a hospitalização, ainda que já vigorasse, desde 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Diante desse panorama, o Saúde e Brincar nasceu em 1994 de um convite feito à sua fundadora Eliza Santa Roza, psiquiatra e psicanalista infantil do IFF, para que pensasse e propusesse ações visando a transformação da realidade de crianças e adolescentes que permaneciam longo tempo internados na enfermaria de pediatria do IFF.
Com a cooperação técnico-científica do Instituto de Psiquiatria (IPUB/ UFRJ) e a inspiração do Projeto Brincar, desenvolvido no pátio externo daquele hospital para receber as crianças que tinham familiares ali internados, foi concebido a iniciativa do IFF. Inicialmente denominado Projeto Brincar II, a iniciativa cresceu na sua composição multiprofissional e na ampliação de suas atividades, passando a se chamar, em 1997, Sáude e Brincar. Nosso núcleo, implicado com a promoção de saúde e humanização da assistência, propôs um novo modelo de atenção. A ideia foi oferecer uma intervenção que não considerasse apenas as questões orgânicas, mas também os aspectos emocionais e socioculturais. O trabalho se fundamenta no brincar livre como elemento mediador das interações e na linguagem lúdica como forma de expressão. Nosso propósito é favorecer o processo de acolhimento e significação do ambiente hospitalar, tanto para a criança e adolescentes internados, como para seus acompanhantes.
Quais são os principais resultados que a ação Saúde e Brincar tem demonstrado em termos de integralidade no acolhimento e humanização no tratamento, considerando os aspectos físicos, psíquicos, sociais e culturais da criança hospitalizada?
Entre os resultados de nossas ações destacamos, em primeiro lugar, o impacto produzido no cotidiano de milhares de crianças ao longo dessas três décadas de atuação. Por intermédio do lúdico, elas conseguem estabelecer vínculos e relações de confiança que contribuem para diminuir a sensação de isolamento e dar continuidade ao seu processo de desenvolvimento. Considerando os aspectos psicossociais do brincar, há a possibilidade de elaborar situações e experiências relacionadas à hospitalização que sejam desconhecidas e/ou desagradáveis e ainda de retomar a infância, interrompida pelo adoecimento e hospitalização, reconectando-se com sua história de vida.
Além disso, o Saúde e Brincar tem contribuído na formação de um expressivo número de profissionais de diferentes categorias. São estagiários, residentes e pesquisadores que têm a oportunidade, única no âmbito do SUS, de experimentar uma relação transformadora com crianças e adolescentes cujas vidas são atravessadas pelo adoecimento crônico e grave. O convite é para que o profissional aprenda a enxergar para além das limitações e acesse seu próprio potencial sensível e criativo. Valorizar a singularidade e a dimensão intersubjetiva das experiências de adoecimento e hospitalização representa uma aposta ética, incluindo o comprometimento e corresponsabilidade de usuários, gestores e profissionais de saúde na produção de cuidado qualificado e humanizado.
No que concerne ao nosso compromisso com a produção de conhecimento, temos, ainda, produzido artigos científicos, livros, exposições e manuais.
Como a criação de espaços lúdicos dentro do hospital altera a percepção da criança sobre o ambiente hospitalar? De que forma essa transformação contribui para o processo de recuperação das crianças internadas?
O hospital é habitualmente associado a um local de doença, dor e sofrimento. Essa vinculação forja a percepção de que é inconciliável que aí também possam acontecer experiências positivas. Criar espaços lúdicos dentro do hospital faz parte de um movimento que busca desconstruir essa ideia. Desde 2005, a Lei nº 11.104 dispõe sobre a obrigatoriedade, por parte dos hospitais que ofereçam atendimento pediátrico em regime de internação, de contarem com brinquedotecas em suas dependências.
No trato com crianças, esse diálogo se faz através dos contextos lúdicos e da criação de um ambiente amistoso. Ao dar espaço e asas para a imaginação, o brincar funciona como ferramenta de reinvenção da realidade, construindo possibilidades de experimentação e deslocamentos que redesenham enredos, personagens e cenas. Na dimensão lúdica, as regras são reeditadas e os limites conhecidos, suspensos. Pode-se inclusive subjugar a doença e o sofrimento, colocá-los num exílio bem longínquo ou trazê-los para o centro da cena para que sejam dramatizados e narrativizados.
A partir desse movimento, as crianças assumem uma posição protagonista, dirigindo o curso dos acontecimentos segundo sua vontade. Conseguem expressar seus medos, angústias, fantasias e raiva, para que esses sentimentos possam, de alguma forma, ter um contorno e serem simbolizados.

A ação tem influenciado outras práticas de saúde infantil em hospitais públicos?
Sim, temos trabalhado ao longo do tempo nesse sentido. O Núcleo Saúde e Brincar tem como princípio atender e receber as pessoas de outras instituições que queiram conhecer nosso trabalho. Esse sempre foi o espírito que norteou nossa equipe desde sua fundação. Desde a concepção do projeto houve o envolvimento continuado na formação de profissionais para atuação no SUS, tanto ao nível da graduação, através do programa de estágio pela Fiocruz, como na pós-graduação latu-sensu e strictu-sensu.
O Núcleo Saúde e Brincar desenvolveu, na década passada, uma cooperação técnica internacional com o Governo da Colômbia para implementação de um modelo de atividades dirigidas para a Promoção de Saúde em duas instituições: Hospital San Rafael de Facatativá e Hospital San Rafael de Fusagasuga. Em fevereiro de 2025, iniciamos uma colaboração interinstitucional de consultoria técnica para o Núcleo de Humanização da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, visando a implementação de um modelo de atendimento com proposição de atividades lúdicas a crianças e adolescentes internados no setor pediátrico do Hospital Gafreé Guinle.
Convivendo com alunos, recebendo pesquisadores ou profissionais de saúde da nossa instituição ou de outras, ministrando aulas nos cursos de Pós-graduação das residências do IFF/Fiocruz e no Curso de Especialização em Promoção de Saúde e Desenvolvimento Social da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), temos trabalhado para divulgar as iniciativas do Núcleo Saúde e Brincar para diferentes públicos na esperança de motivar outros profissionais a valorizarem os encontros em que as potências do lúdico possam enaltecer a vida e a alegria.
Acreditamos que a integração do brincar aos atendimentos de quaisquer profissionais de saúde envolvidos com o atendimento de crianças, reconfigura o espaço de trocas que se estabelece entre quem é cuidado e quem cuida. No investimento nessas trocas genuínas, cria-se uma ambiência respeitosa e afetiva, promovendo saúde tanto para crianças, como para familiares e profissionais.
Em que medida essa ação reflete os princípios de humanização e integralidade do SUS?
Considerando que, para se efetivar a humanização é fundamental que os sujeitos participantes dos processos em saúde se reconheçam como protagonistas e corresponsáveis de suas práticas, e que a integralidade está relacionada à compreensão integral do ser humano, o sistema de saúde deve estar preparado para ouvir o usuário e entendê-lo inserido em seu contexto social para, a partir daí, atender às demandas e necessidades desta pessoa.
Por tudo que já foi exposto, a metodologia de trabalho do Núcleo Saúde e Brincar reconhece a criança e o adolescente como sujeitos capazes de realizar escolhas e de participar ativamente do contexto onde se acham inseridos. São acolhidos e respeitados em sua singularidade, nunca reduzidos a um diagnóstico ou condição clínica. Os familiares são também vistos em sua singularidade, crenças e preferências.