Projeto Valoriza Importância Da Alimentação Para Comunidades de Matriz Africana

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Por: Ricardo Valverde (Agência Fiocruz de Notícias)
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A Fiocruz lançou, no último dia 16, o Projeto de Implementação de Hortas Tradicionais para a Promoção da Alimentação Adequada e Saudável em Terreiros de Matriz Africana. O evento, na sede da Fundação, em Manguinhos, reuniu lideranças religiosas, pesquisadores, parlamentares e representantes do Governo Federal. O objetivo do projeto é valorizar o conhecimento ancestral, a cultura e a importância da alimentação para a saúde e o bem-estar das comunidades religiosas de matriz africana. Segundo os líderes da iniciativa, os terreiros de matriz africana são espaços de promoção da saúde nos territórios e também equipamentos de cuidado, proteção e resistência da população negra e dos povos tradicionais. O projeto une ancestralidade, agroecologia e promoção da saúde da população negra.

A mesa de abertura ressaltou a importância do enfrentamento ao racismo e às desigualdades e a defesa das comunidades de matriz africana (Foto: Peter Ilicciev)
 

O lançamento da iniciativa teve início com cânticos ancestrais entoados pela ialorixá Mãe Meninazinha de Oxum, de 87 anos, do Ilê Omolum Oxum, de São João de Meriti (RJ). Ela é uma das principais referências do candomblé no Rio de Janeiro. Com raízes no candomblé da Bahia, ela tem décadas de luta contra a intolerância religiosa e em favor da divulgação da contribuição dos terreiros para a cultura brasileira.

Segundo o coordenador interino de Promoção da Saúde da Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS/Fiocruz), Valber Frutuoso, que representou o presidente da Fundação, Mario Moreira, na mesa de abertura do evento, o projeto se insere em uma determinação da instituição em estimular iniciativas do gênero e significa uma grande vitória. “É preciso ocupar espaços e reconhecer, cada vez mais, a diversidade”. Frutuoso e a pesquisadora Denise Oliveira e Silva, da Fiocruz Brasília, são os gestores-executivos do projeto.

Denise Oliveira e Silva afirmou que a iniciativa tem a perspectiva de ir além da literatura científica, que normalmente exclui os saberes tradicionais. “Essa literatura trouxe desigualdade, racismo e miséria. Precisamos romper com esse viés excludente e abraçar aquele que agrega, como os saberes ancestrais. O modelo atual hegemônico das ciências faliu e as políticas públicas necessitam do suporte da ancestralidade”, observou Denise. Segundo ela, “os terreiros são equipamentos públicos de acolhimento, de segurança alimentar e de promoção da saúde, como vimos na pandemia”. A pesquisadora disse sofrer preconceito e racismo quando ouve que ela “estudou tanto para virar pesquisadora de macumbeiro”.

A líder do eixo de Relações Étnico-Raciais da Coordenação de Equidade, Diversidade, Inclusão e Políticas Afirmativas (Cedipa/Fiocruz), Roseli Rocha, presente à abertura do evento, abordou o racismo religioso e o preconceito racial em sua intervenção e comentou as ações do setor, que foi instituído há dois anos, no primeiro mandato do presidente Mario Moreira. Ela comentou sobre o enfrentamento à violência racial e as múltiplas dimensões do racismo, em especial o de caráter religioso. 
 

As ialorixás Mãe Meninazinha de Oxum e Mãe Nilce de Iansã no lançamento do projeto (Foto: Peter Ilicciev)
 

A apresentação do projeto Implementação de Hortas Tradicionais para a Promoção da Alimentação Adequada e Saudável em Terreiros Religiosos de Matriz Africana foi feita pela pesquisadora Winnie Samanú, da Assessoria de Relações Institucionais da Presidência da Fiocruz. Segundo ela, “os terreiros de matriz africana têm um papel central na promoção da saúde e do bem viver em comunidades negras e tradicionais, com a uso de saberes ancestrais sobre o uso de plantas alimentícias e medicinais e o enfrentamento ao racismo religioso e ambiental, a partir de modelos de desenvolvimento sustentável baseados na justiça social e na equidade racial”. O projeto pretende implementar hortas comunitárias em terreiros de matriz africana para a promoção da soberania, segurança alimentar e nutricional e da saúde. Num primeiro momento participarão o Asé Iya Nasso Oka Ile Oxum, o Ilê Axé Opô Afonjá, o Ilê Omiojuarô e o Ilê Omulu Oxum.

Winnie ressaltou que o desenvolvimento do projeto tem como base três teses do Congresso Interno da Fiocruz: o engajamento em prol de melhores condições de saúde da população e do SUS, a partir de processos participativos e inclusivos; a formulação de políticas públicas interseccionais e enfrentamento às desigualdades; e a Saúde como direito ampliado, com base na Agenda 2030 da ONU. As principais metas são a criação de modelagens de sustentabilidade energética para o desenvolvimento de sistemas produtivos tradicionais para a promoção da alimentação adequada e saudável; a realização de processos formativos que promovam intervenções integradas com ações de economia agroecológica, saúde, soberania e segurança alimentar e nutricional; e a divulgação de materiais de informação e comunicação para o Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares. A primeira meta vai focar em projetos arquitetônicos adequados e na implementação das hortas tradicionais.

Os princípios do projeto são o respeito às tradições/ancestralidade, com o fortalecimento das práticas de cultivo, colheita e manejo dentro da cosmologia africana e afro-brasileira; o olhar para a tradição como ponto de partida para a técnica/prática da agricultura tradicional; o incentivo à autonomia e à soberania alimentar, com o fomento ao uso de técnicas agroecológicas para garantir a sustentabilidade da produção, reduzindo a dependência de insumos externos; e a educação popular e formação coletiva, baseada no diálogo entre os conhecimentos tradicionais e outras perspectivas da agroecologia. A iniciativa prevê ainda a formação de multiplicadores dentro dos terreiros para continuidade das práticas, a construção de redes de intercâmbio entre terreiros para compartilhamento de experiências e conhecimentos, o respeito às especificidade das práticas de cada território, o incentivo à sistematização das experiências, por meio de relatos, vídeos e outros materiais produzidos, e a construção do pensamento e prática da agricultura tradicional de matriz africana.

Ao concluir sua apresentação, Winnie destacou os resultados esperados pelo projeto. Um deles é o reconhecimento dos terreiros como equipamentos vivos de promoção da saúde, o cuidado integral e a soberania alimentar, tendo como base seus saberes, práticas e relações com o território. “Também queremos valorizar as hortas tradicionais como estratégias de autonomia alimentar, preservação de saberes ancestrais e enfrentamento do racismo religioso e ambiental e fortalecer as redes, movimentos sociais, universidades e políticas públicas para garantir apoio técnico, político e financeiro às iniciativas dos terreiros”.

Fazem parte ainda dos resultados previstos o registro e a partilha de saberes alimentares, o respeito às tradições orais e o incentivo a que os terreiros sejam inseridos nas políticas de saúde, segurança alimentar, meio ambiente e cultura. A equipe do projeto será formada, além de seus gestores-executivos, por autoridades religiosas (ialorixás e babalorixás que vão acompanhar as ações e propor os ajustes necessários), antenas (indicados pelas autoridades religiosas como pontos focais no territórios), pesquisadores (que vão apoiar a coleta e análise dos resultados) e assessores.

A diretora nacional de Políticas para Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e de Terreiro do Ministério da Igualdade Racial (MIR), Luzi Borges, presente ao evento, saudou a iniciativa e fez uma apresentação da Política Nacional para Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro e Matriz Africana. “O objetivo é incentivar medidas intersetoriais que garantam os direitos desses povos tradicionais, por meio da promoção da igualdade racial, do reconhecimento, do respeito e da valorização da cultura e da memória dos afrodescendentes e da superação do racismo”, destacou a diretora.

Ela disse que esse esforço conta com três eixos: Direitos Sociais e Cidadania, Enfrentamento ao Racismo Religioso e Fortalecimento Territorial e Inclusão Produtiva – este último relacionado diretamente ao projeto da Fiocruz, já que prevê a retomada do desenvolvimento sustentável pelas comunidades tradicionais de terreiro. Luzi também discorreu sobre os editais do MIR para fomentar a ancestralidade, a liberdade religiosa e valorizar a cultura e tradição dos povos de matriz africana e de terreiros.

“As denúncias de racismo religioso e racismo ambiental cresceram 130% no atual governo, o que significa que as pessoas se sentem seguras para denunciar. Não aumentou a violência, o que aumentou foi a informação da violência. E o Guia de Orientação de como Denunciar o Racismo Religioso, publicado pelo MIR, tem contribuído para isso”.

A deputada estadual Renata Souza (Psol), disse que esse processo precisa ser incentivado e consolidado. “As casas de axé, milenarmente, são identificadas como espaço de acolhimento e cura, passando a oferecer alimentos, cestas básicas ou algum auxílio a quem vive em situação de extrema vulnerabilidade. Que a gente ouça e aprenda cada vez mais com os povos de terreiro”.

A parlamentar, que apresentou projeto na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) reconhecendo os terreiros como espaços de cura, disse que os protagonistas do conhecimento das plantas, os povos de terreiro, não têm visibilidade e são discriminados. A deputada foi autora do projeto de lei que criou o Observatório Mãe Beata de Iemanjá sobre Racismo Religioso.

O lançamento do projeto contou ainda com a presença de Mãe Nilce de Iansã e de Mestre Aderbal de Ashogun. Mãe Nilce publicou três livros de culinária com 20 receitas, como o acarajé feito para Iansã nas celebrações, e o omolocum, de Oxum, e mantém um canal no YouTube sobre o tema que contribui para a geração de renda. “As pessoas que têm problemas recorrem aos terreiros. Lá são acolhidas e cuidadas. Isso é promoção da saúde”.

Mestre Aderbal de Ashogun, que está à frente da Rede Afroambiental, utiliza os saberes e tecnologias ancestrais das matrizes africanas, as raízes do candomblé, a arte e a pesquisa acadêmica como ferramentas de combate às mudanças climáticas e às discriminações religiosas. “Eu fui criado por uma mãe que lutou pelo direito das mulheres. A gente cantava, tocava, dançava, preparava a comida dos santos... essa formação me deu base como artista plástico, como mestre de cultura tradicional, como intelectual do povo para questionar a academia”.

A mãe de Mestre Aderbal foi a fundadora, em 1992, da Rede Afroambiental, que atua em quatro temas: cultura, educação, saúde e clima. Ele também abordou a criação da Escola Afro-Climática Mãe Beata de Yemanjá – que leva o nome da mãe de Aderbal – que visa enfrentar o racismo ambiental e promover justiça climática educação, cultura e saúde a partir de uma perspectiva ancestral e comunitária. É a primeira instituição de ensino no Brasil a integrar saberes tradicionais afrodescendentes com práticas pedagógicas, sociais e científicas.

Também houve uma apresentação do projeto Ecoilê, da Fiocruz Brasília, que promove a economia ecológica, saúde, soberania e segurança alimentar nos terreiros de matriz africana. O projeto tem trabalhado para fortalecer a história ancestral de resistência contra todas as formas de discriminação e valorizar a contribuição desses territórios para a sociedade. A pesquisadora Marcia Pereira e o assessor parlamentar Tomás Ramos, que representou o deputado federal Tarcísio Motta (Psol-RJ), participaram da apresentação do projeto.