Há cinco anos, a pandemia de Covid-19 impôs desafios sem precedentes à saúde global, com impactos profundos na assistência materno-infantil. A crise sanitária exigiu respostas rápidas para garantir o atendimento seguro a gestantes, bebês e crianças, evitando a descontinuidade de cuidados essenciais. Nesse cenário, o Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz) desempenhou um papel estratégico na produção e disseminação de conhecimento, apoiando a reorganização dos serviços de saúde e oferecendo diretrizes baseadas em evidências para profissionais de todo o país.
Como parte desse legado, a Vice-Presidência de Atenção e Ambientes de Promoção da Saúde (VPAAPS/Fiocruz) lançou o livro Retorno seguro às atividades escolares no contexto da pandemia de Covid-19. A obra reúne experiências e reflexões sobre o planejamento, monitoramento e vigilância para o retorno seguro às atividades escolares no contexto da covid-19.
Atendimento às Crianças e o Impacto da Vacinação
A pandemia impôs desafios inéditos ao atendimento pediátrico, exigindo adaptação e inovação para garantir o cuidado às crianças em um cenário de incerteza. Segundo o pediatra e infectologista do IFF/Fiocruz, Márcio Nehab, a crise sanitária impactou não apenas o acesso aos serviços de saúde, mas também o bem-estar infantil de forma ampla. “Vivemos uma queda brusca na cobertura vacinal, interrupções em atendimentos essenciais, suspensão de triagens neonatais e atrasos em tratamentos oncológicos. E para além das estatísticas, vimos crescer a fome, a violência doméstica, os problemas de saúde mental e a perda de vínculos escolares”, relata.
Diante dessa realidade, o IFF/Fiocruz precisou se reorganizar rapidamente para manter a assistência às crianças. O instituto produziu documentos técnicos, revisou protocolos e participou da formulação de políticas públicas para a proteção da infância. “Nosso compromisso foi garantir a continuidade do cuidado com segurança para as crianças, suas famílias e os profissionais de saúde. Atuamos desde o acolhimento direto de casos até a formulação de orientações para escolas e outras unidades de saúde, sempre atentos aos impactos psicológicos da pandemia”, explica o especialista.
Cinco anos depois, a imunização infantil contra a Covid-19 ainda enfrenta desafios, especialmente diante da hesitação vacinal. Para Nehab, é preocupante que, mesmo após o avanço científico sem precedentes na criação das vacinas, muitos pais ainda resistam à vacinação de seus filhos. “Nosso desafio, hoje, é reconstruir a confiança. Precisamos conversar com as famílias, acolher suas dúvidas, combater a desinformação com empatia, não com julgamento. A vacina salvou vidas — muitas vidas — e esse é um legado que não pode ser apagado”, destaca.
Olhando para o futuro, o especialista reforça a importância de fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS) e garantir a produção nacional de vacinas e insumos, para que o Brasil esteja mais preparado para enfrentar novas emergências sanitárias. “Que possamos produzir aqui, no Brasil, nossas próprias vacinas, equipamentos e insumos. Que o SUS seja fortalecido não apenas em momentos de crise, mas como prioridade de Estado. E que a memória do que vivemos sirva para proteger as próximas gerações — inclusive as que ainda nem nasceram”, conclui Nehab.
Estudos e aprendizados
Os estudos do IFF/Fiocruz: VacinaKids e TREND revelaram aspectos fundamentais sobre a hesitação vacinal e a percepção da imunização contra a Covid-19 no Brasil. O estudo TREND, realizado na primeira semana da disponibilização das vacinas, indicou que a hesitação estava associada a fatores como o medo de reações adversas, a desconfiança no país de origem da vacina e a importância atribuída à sua eficácia. "Entre os hesitantes vacinais, houve uma alta rejeição a informações vindas da televisão e da Organização Mundial da Saúde (OMS), mas o Ministério da Saúde (MS) e os médicos ainda eram fontes confiáveis", destaca a pediatra e pesquisadora do IFF/Fiocruz, Daniella Moore. Já o estudo VacinaKids, que investigou a intenção dos pais em vacinar seus filhos, identificou crenças equivocadas, como a percepção de que a imunidade natural seria mais segura que a vacinação. Além disso, muitos pais confundiram a autorização emergencial das vacinas com a fase experimental, gerando insegurança sobre os possíveis efeitos adversos.
A análise dos dados desses estudos, cinco anos após a pandemia, reforça a necessidade de fortalecer a comunicação pública sobre imunização. Os resultados demonstram a importância de adaptar estratégias para diferentes públicos e de capacitar profissionais de saúde para lidarem com a hesitação vacinal. "O treinamento da comunicação médica em vacinação deve ser guiado pelas dúvidas já mapeadas nesses estudos", afirma Moore. Além disso, os achados destacam a urgência de melhorar a tradução do conhecimento científico para a população geral, evitando que informações complexas gerem medo e desinformação.
O projeto COVIDpro-Escola trouxe contribuições significativas ao avaliar o impacto da pandemia no retorno escolar no Rio de Janeiro. A pesquisa revelou que pais e professores enfrentaram desafios como a falta de medidas preventivas adequadas e a necessidade de capacitação dos educadores em biossegurança. "Compreender as percepções dos professores sobre o retorno escolar é fundamental para auxiliar na formulação de protocolos mais eficazes para futuras crises sanitárias", ressalta Moore.
Já o projeto COVIDpro-RJ analisou o impacto da pandemia sobre os profissionais de saúde do estado do Rio de Janeiro, revelando sentimentos de medo, estresse e desamparo. A pesquisa evidenciou que, apesar de inicialmente exaltados como heróis, os profissionais enfrentaram grande desgaste emocional e físico. "A teoria da dádiva de Marcel Mauss foi utilizada para compreender as relações de trabalho em saúde, destacando a urgência de reformulações que promovam o bem-estar dos profissionais", explica Moore.
Por fim, estudos como o que avaliou a opinião dos brasileiros sobre o lockdown mostraram uma polarização na sociedade. Enquanto um grupo seguia recomendações científicas, outro rejeitava as medidas restritivas por medo de impactos econômicos e desconfiança nas informações divulgadas. Esses achados reforçam a importância de políticas públicas baseadas em evidências para lidar com futuras emergências sanitárias, garantindo maior adesão da população às estratégias de proteção coletiva.
Retorno escolar seguro
Passados cinco anos do início da pandemia, um Grupo de Trabalho (GT) da Fiocruz, que estudou e orientou boas práticas para o retorno seguro às atividades escolares, lançou um livro intitulado Retorno seguro às atividades escolares no contexto da pandemia de covid-19: percurso de um grupo de trabalho, no dia 18 de março, na Biblioteca de Manguinhos. A obra reúne contribuições sobre planejamento, monitoramento e vigilância no contexto da Covid-19, abordando análises epidemiológicas, informações clínicas e a importância da vacinação.
Coordenado pela Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde, o GT foi nomeado pela Presidência da Fiocruz e contou com representantes de diversas unidades da Fundação. No IFF/Fiocruz, os pediatras Lívia Menezes, Márcio Nehab e Maria Martha Duque de Moura participaram ativamente da construção do material, que já está disponível para acesso aberto no repositório Arca. O livro se dedicou a relatar o percurso desse grupo de trabalho e as principais publicações e recomendações do período. Foi uma iniciativa coordenada pela VPAAPS em função do frequente acionamento da Fiocruz, desde o início da pandemia, para posicionar-se diante dos desafios sanitários que surgiam diariamente.
Os desafios para garantir um retorno seguro às escolas foram diversos, como explica a pediatra e coordenadora de Atenção à Saúde do IFF/Fiocruz, Lívia Menezes. “a natureza inédita da situação, a dificuldade em realizar planejamento sem um prazo definido para a reabertura das escolas, a grande disparidade das infraestruturas físicas, tecnológicas e de pessoal das escolas no país que perpetuou desigualdades de acesso e aprendizagem, até a considerável parcela de crianças em situação de vulnerabilidade econômica e social que encontravam nas escolas um ambiente seguro e com garantias nutricionais e sociais, e que deixaram de ter esse suporte de forma abrupta. Além disso, houve também a significativa circulação de desinformação durante aquele período, criando barreiras e receios”, relata.
Autores do livro reunidos no lançamento da obra no dia 18 de março, na Biblioteca de Manguinhos (Foto: IFF)
Entre os aprendizados da reabertura escolar, Lívia ressalta a necessidade de instituições estratégicas de Estado com credibilidade e reputação científicas para construção de planos de contingência baseados em evidências. “Protocolos sanitários e de infraestrutura desenvolvidos na pandemia devem ser reaproveitados, assim como investimentos em tecnologia educacional para reduzir desigualdades e facilitar a conexão entre as pessoas. A comunicação entre escolas, famílias e autoridades de saúde precisa ser clara, contínua e com o maior envolvimento da comunidade escolar nas tomadas de decisão. E, naturalmente, destaca-se a importância de programas de apoio psicológico para alunos, professores e pais lidarem com o estresse da crise sanitária, a evasão escolar e o isolamento social.”
O livro documenta a trajetória do GT e as principais recomendações formuladas ao longo da pandemia, contribuindo para o debate sobre os impactos da crise na educação. “O grupo se reunia semanalmente para discutir e elaborar recomendações técnicas com base no vasto volume de evidências científicas disponíveis à época e na experiência dos especialistas que o compunham. De certa forma, o livro contribui não somente pelo material técnico produzido, mas, sobretudo, pelo relato de nossa experiência coletiva frente à primeira grande crise sanitária de nossa geração”, conclui Lívia.
Lições da pandemia no atendimento a gestantes
A pandemia também impôs desafios sem precedentes à assistência obstétrica, exigindo adaptações rápidas e eficazes nos serviços de saúde. Segundo a gestora da Área de Atenção Clínico-Cirúrgica à Gestante do IFF/Fiocruz, Aricele Ferreira, a ausência de um planejamento estratégico nacional fragilizou a assistência, tornando essencial a capacidade de aprender diariamente com a adversidade. “Foi um grande aprendizado para todos os serviços de saúde, uma necessidade urgente de adaptação diante do medo do desconhecido”, afirma.
O período foi crucial para a reavaliação dos fluxos de trabalho e a otimização de recursos, desde a triagem de pacientes até a alocação de insumos, o que permitiu a identificação de gargalos e a implementação de processos mais ágeis. Além disso, a necessidade de capacitação contínua das equipes resultou na sistematização de treinamentos intensivos, criando protocolos que podem ser aplicados em futuras emergências sanitárias. “Nos tornamos mais atentos e vigilantes diante das adversidades, além de utilizar nossa criatividade para lidar com este período tão desafiador e marcante”, destaca Aricele.
A colaboração interdisciplinar também foi fortalecida, promovendo uma abordagem integrada entre diferentes especialidades médicas. O aprendizado desse período não apenas aprimorou a assistência obstétrica, mas também reforçou a importância de uma comunicação ágil e transparente. “A pandemia nos ensinou a nos comunicar melhor, com mais rapidez e clareza, e a nos atualizarmos constantemente sobre como agir”, conclui a gestora.
Amamentação e a pandemia: desafios e aprendizados
O medo e a incerteza marcaram o início da pandemia para mães lactantes, que se questionavam sobre a segurança da amamentação. “Posso seguir amamentando o meu filho? E se eu contrair o vírus?”, relembra a coordenadora do Banco de Leite Humano (BLH) do IFF/Fiocruz, Danielle Aparecida da Silva. A resposta veio com o avanço das evidências científicas, que demonstraram a ausência do vírus SARS-CoV-2 no leite materno e reforçaram a importância da amamentação. Baseada nesses achados, a Rede de Bancos de Leite Humano (rBLH) publicou notas técnicas para orientar profissionais de saúde e garantir um suporte seguro às mães.
Diante do distanciamento social, os BLHs e Postos de Coleta de Leite Humano (PCLHs) adaptaram suas estratégias, intensificando o uso de tecnologias remotas para apoiar as lactantes. “As equipes se reinventaram, utilizando redes sociais e atendimento remoto para alcançar um maior número de mulheres”, explica Danielle. Além disso, a experiência revelou um impacto positivo do home office na amamentação, permitindo que mães prolongassem o aleitamento ao permanecerem próximas aos bebês. Esses achados reforçam a importância de políticas públicas como a ampliação da licença-maternidade para seis meses.
Já no campo da doação, a pandemia impulsionou a solidariedade. A rBLH observou um aumento significativo no volume de leite coletado, reflexo da mobilização de mães dispostas a contribuir. “Em um período em que a solidariedade era necessária, iniciou-se uma corrente de doadoras, garantindo leite para os recém-nascidos vulneráveis”, destaca Danielle. O fortalecimento das boas práticas de manipulação do leite humano nos BLHs e PCLHs, já enraizadas desde a década de 1980, assegurou a segurança alimentar dos bebês que mais precisavam.
O impacto do Portal de Boas Práticas na pandemia e além
Lançado em 2017, o Portal de Boas Práticas do IFF/Fiocruz já era uma ferramenta essencial para a disseminação do conhecimento em saúde materno-infantil. No entanto, foi durante a pandemia que se consolidou como a principal referência nacional para profissionais da área, oferecendo informações baseadas em evidências sobre a Covid-19. “O portal orientou não apenas as práticas clínicas, mas também a reorganização de fluxos assistenciais em maternidades e serviços de urgência e emergência”, explica a coordenadora do Portal de Boas Práticas e de Ações Nacionais e de Cooperação do Instituto, Maria Gomes.
A demanda crescente por informações confiáveis impulsionou a produção de conteúdos específicos sobre a doença, incluindo traduções de diretrizes internacionais, recomendações do Ministério da Saúde e webinares que chegaram a reunir mais de mil participantes ao vivo. O aumento do alcance foi expressivo: de 207 mil acessos acumulados entre 2017 e o início de 2020, o Portal passou a registrar mais de 8 milhões até o final de 2024, consolidando-se como uma referência para o SUS e para futuras emergências sanitárias.
Além do impacto digital, a atuação do IFF/Fiocruz se estendeu para além da plataforma, com apoio direto às secretarias estaduais e maternidades, garantindo a continuidade da assistência em um momento crítico. Essa experiência está registrada no livro Covid-19: desafios para a organização e repercussões nos sistemas e serviços de saúde, com destaque para o Capítulo 13 – Maternidades e Covid-19: atenção às gestantes e recém-nascidos no contexto da pandemia, organizado pela equipe do Portal de Boas Práticas do IFF/Fiocruz: Maria Gomes, Cynthia Magluta, Luiza Beatriz Acioli e Lidianne Albernaz.
Jornalismo científico e combate à desinformação
A pandemia da Covid-19 evidenciou o papel essencial do jornalismo científico na disseminação de informações confiáveis e no enfrentamento da desinformação. “A rotina da comunicação tornou-se intensa e desafiadora, exigindo rápidas adaptações para garantir a divulgação ágil e segura de informações em tempo real”, destaca o jornalista do IFF/Fiocruz, Everton Lima. O trabalho das Assessorias de Comunicação da Fiocruz foi fundamental para combater fake news, orientar a população e fortalecer a compreensão do SUS como peça-chave no enfrentamento da crise sanitária.
A ampla presença das pautas de saúde na mídia possibilitou que informações essenciais, como a importância da vacinação e das medidas de proteção, chegassem à população. No entanto, a desinformação representou um grande desafio. “Fake news sobre a vacinação impactaram diretamente a adesão às campanhas, gerando medo e desconfiança”, ressalta Everton. Para reverter esse quadro, a comunicação científica precisou se fortalecer, aliando especialistas e jornalistas na missão de traduzir o conhecimento acadêmico para o público de forma acessível.
O legado desse período reforça a necessidade contínua de divulgação científica clara e baseada em evidências. “A responsabilidade com a saúde não deve ocorrer apenas em momentos de pandemia, mas no dia a dia”, afirma o jornalista. A orientação é que a população busque sempre fontes oficiais, como a Fiocruz e o MS, antes de compartilhar qualquer informação. A experiência da pandemia mostrou que um jornalismo comprometido com a ciência é uma das ferramentas mais eficazes para proteger a saúde coletiva e enfrentar futuras crises sanitárias.
Lições da pandemia e o papel vital da ciência e saúde pública
A Covid-19 deixou lições profundas para o sistema de saúde pública brasileiro. “Não podemos mais serem apanhados desprevenidos como fomos na pandemia”, afirma a pneumologista e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Margareth Dalcolmo. Segundo ela, é imprescindível que o Brasil se prepare com mais eficiência, garantindo estoques adequados de insumos e a formação de profissionais capacitados para responder a emergências sanitárias. Esse aprendizado reforçou a importância da geração de dados confiáveis, essencial para enfrentar futuras crises de saúde pública.
A resposta da Fiocruz à crise foi exemplar, com a produção de dados diários como os do InfoCovid-19 e a criação de um hospital de referência para doenças infecciosas. “A Fiocruz teve um papel extraordinário, criando projetos comunitários e ampliando a confiança da sociedade na instituição”, destaca Margareth. Ela ainda enfatiza a importância de fortalecer a vigilância genômica e os laboratórios de pesquisa no país, especialmente no norte, onde a diversidade viral é maior. O investimento na produção nacional de vacinas e fármacos também é crucial para o Brasil garantir autonomia em crises futuras.
Cinco anos depois, o país continua enfrentando desafios, como a vigilância das variantes do coronavírus e a necessidade de mais investimentos em ciência e pesquisa. “O Brasil tem se destacado na produção científica, mesmo diante das dificuldades, e deve continuar a fortalecer essa produção”, conclui Margareth Dalcolmo. Para o futuro, o foco deve ser em aprimorar a infraestrutura de saúde pública e garantir a continuidade da pesquisa científica, elementos fundamentais para a segurança do país diante de novas emergências sanitárias.