Ação Global Inclusiva Foi Tema Da Aula Inaugural Da Fiocruz

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CCS
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Eu acredito na vida e a vida é, sobretudo, coletiva”. Com essa frase e sob aplausos, a professora Nísia Trindade Lima, que esteve à frente do Ministério da Saúde de setembro de 2023 até o início deste ano e presidiu a Fiocruz por dois mandatos, concluiu a aula inaugural do ano letivo da Fundação. O tema foi Ação global inclusiva frente aos desafios de saúde. A aula magna aconteceu no Auditório do Centro Administrativo Vinícius Fonseca, de Bio-Manguinhos, no Campus Manguinhos, com início às 9h e transmissão pelo canal da Fiocruz no YouTube. 

A aula aconteceu no Dia Mundial da Saúde. “É uma data que celebra o nascimento da Organização Mundial da Saúde, em 1948, num momento em que o multilateralismo está em xeque, pelo arranjo internacional, pelo posicionamento do governo Trump”, afirmou, ao lembrar os questionamentos do governo dos Estados Unidos sobre o papel da OMS e a Agenda 2030. 
Ela iniciou com a projeção do documento Unindo forças para superar desafios globais, assinado pelos presidentes do Brasil, África do Sul e Espanha, que assumia o compromisso de reforçar o multilateralismo. Em seguida, falou da aula inaugural A Organização Mundial da Saúde e a Aids: o que podemos aprender com a história, ministrada por Elizabeth Free na Casa de Oswaldo Cruz, em 2006. O tema se tornou um artigo assinado por ela e mais um pesquisador. 

Aids e Covid-19 
A partir dessas referências, Nísia desenvolveu um paralelo entre a pandemia de Aids e da Covid-19. “O que se mostra claramente é o percurso de lutas históricas com forte participação da sociedade civil e, também da comunidade acadêmica, nos caminhos que foram sendo percorridos para a política de HIV e Aids, desde um momento em que termos como câncer gay, por exemplo, eram usados. Houve uma luta em que os trabalhos científicos foram muito importantes”, afirmou. 

“O argumento que eu defendo é que, a partir dessa experiência, claramente houve um impacto na arquitetura global. Surgiram agências, houve uma maior abertura da Organização Mundial da Saúde para tratar agendas, acertar políticas e a própria criação de um departamento voltado para prevenção e controle de HIV-Aids a partir não só da experiência, mas da formação de comunidades epistêmicas, mas a partir também de um movimento social”.

“Quando eu falo que houve um avanço, isso se deu com muitas lutas históricas. Em 2023, tivemos a menor taxa de HIV Aids desde 2013, resultado da reorganização da política”, lembrou. Ela lembrou que o programa criado em1986, referência mundial, criou a obrigatoriedade do tratamento com antiretrovirais no sistema público de saúde. “Em 1996, apensar dos avanços, se considerava que o foco deveria ser a prevenção. O que o Brasil fez de muito importante foi incluir o tratamento”.

Equidade em saúde

A palestrante apresentou dados epidemiológicos das pessoas infectadas por HIV/Aids no mundo em 2023: 630 mil pessoas morreram por doenças relacionadas à Aids; 1,3 milhões testaram positivo para HIV; e diariamente, 570 jovens mulheres e meninas (entre 15 e 24 anos) foram infectadas. Pelo menos 22 países da África Oriental e Austral, mulheres e meninas dessa faixa etária têm três vezes mais chances de viver com HIV do que meninos jovens homens.

“Além do valor que damos à questão da equidade e da diversidade, é fundamental como política pública”, disse. Nísia ressaltou a importância da criação do Conselho Global sobre Desigualdades, Aids e Pandemias, com a participação de representantes de todos os continentes. O conselho tem o desafio de lidar com o paradoxo do avanço do conhecimento científico e tecnológico do diagnóstico e tratamento de HIV/Aids simultaneamente ao aumento da desigualdade. Nísia continua como integrante deste conselho.

Ela citou o documento publicado pela Unaids, Uma oportunidade para acabar com a Aids. “Existem instrumentos científicos importantíssimos para travar esse enfrentamento. No entanto, existem drogas injetáveis de grande duração de custo altíssimo”, informou, e discorreu sobre as discussões em torno do tema. Nisia recomendou a leitura do dossiê da Abrasco sobre a experiência da Covid-19, vivida de forma desigual. 1:10

Impactos da Covid-19

Nísia citou a frase do sociólogo Anthony Giddens, “a Covid-19 não é um retorno a epidemias prévias na história” ao falar do contexto muito diverso de hoje - o conhecimento científico, a comunicação, a dificuldade de identificar o que é científico ou não. “A comunicação tem impacto no próprio curso da pandemia”, afirmou, lembrando que muitos compararam a última pandemia à gripe espanhola, devido ao impacto e número de mortes, maior que o causado pela 1ª Guerra Mundial.  

“O tempo presente nos fala de fatores ambientais, mas também da grande transformação nos meios de informação e comunicação, com outra velocidade, e do desafio da própria relação entre comunicação, saúde e democracia”, disse. Embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) tenha considerado vacinas seriam bens públicos globais, a realidade se mostrou diferente. “O que vimos foi dificuldade de acesso. “O Brasil, em 17 janeiro de 2021, entra nesse mapa graças ao grande esforço do Instituto Butantã e da Fiocruz. Nesse momento, apesar de se declarar bem público, 10 países concentraram 70% das doses aplicadas”, ressaltou.

Os números mostram o impacto da pandemia de Covid-19 em várias áreas dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (Agenda 2030). “Reforçou barreiras para alcançar os ODS e exacerbou desigualdades estruturais”, disse, lembrando dados como os da violência contra as mulheres, aumentou em três vezes; o agravamento do desemprego; a sobrecarga dos sistemas de saúde e falta de sistemas de proteção social. Ela afirmou que muitas pesquisas ainda estão sendo realizadas para tratar dos impactos em saúde mental, na população idosa e nas relações afetivas, entre outras questões.

Diretrizes para o futuro

“O que a Fiocruz fez foi um esforço coletivo de entregar o seu melhor”, avaliou, ao comentar a projeção institucional e sua, pessoal, durante o período. Nísia enumerou o que considera necessário a partir do aprendizado com a experiência da pandemia. Investimento contínuo em pesquisa, tecnologia e inovação; descentralização dos bens de saúde (vacinas medicamentos, testes diagnósticos); fortalecimento da governança global e do papel do multilateralismo.

Outras diretrizes apontadas por ela foram abordagens interdisciplinares diante de desafios cada vez mais complexos; mudança do paradigma da comunicação da ciência; e aprofundamento das relações entre ciência e democracia. Nísia citou como referência para a questão da comunicação um artigo de André Botelho, pesquisador do Icict, apresentado em 2021, no período do IX Congresso Interno.

Ela falou da importância da governança global e do tratado sobre pandemias. “O Brasil vem lutando pelo engajamento político em alto nível e inclusão global, por maior equidade no acesso a tratamentos médicos, fortalecimento da resiliência nacional, regional e global; e abordagem de saúde única, que articule a saúde de seres humanos, animais e do planeta”, enumerou.  

Nísia indicou a leitura do artigo que assinou, Pandemia e interdisciplinaridade: desafios para a saúde coletiva, publicado na revista Saúde em Debate. “Nessa concertação global necessária, tivemos uma experiência muito positiva com a presidência do Brasil no G20, com as propostas que conseguimos aprovar”, lembrou. Ela destacou a Declaração do Rio de Janeiro e a declaração dos ministros de saúde sobre mudanças climáticas, saúde e equidade e abordagem Uma Só Saúde.

“Por fim, é emblemático que o G20 tenha terminado, como último compromisso, com a Organização Mundial da Saúde na sua rodada de investimentos em Saúde Pública, para garantir o multilateralismo e o acesso, pensando no futuro da saúde global”, disse. “Não foram só recursos, mas foi sinalizar esse compromisso”, disse. Nísia concluiu falando sobre a relação da Fiocruz com a sociedade, especialmente com os territórios. “Temos que fazer desse discurso prática efetiva”, afirmou, para em seguida concluir com a frase que ouviu em um show - não vim ao mundo para desanimar. “Eu acredito na vida e a vida é sobretudo coletiva”.  

Recepção

Ao chegar, Nísia se lembrou de forma afetiva de quando esteve pela primeira vez na Fiocruz pela primeira vez, para uma entrevista com Paulo Gadelha. E falou da emoção de voltar à casa e se encontrar com duas jovens filhas de servidores da Fiocruz ao chegar no auditório. “São quase quarenta anos, 38 anos que vou completar em maio”, disse, para em seguida agradecer à recepção. “A mesa de abertura foi para mim de grande emoção”.

Na mesa de abertura, o presidente Mario Moreira leu a carta que Nísia lhe enviou no dia da posse (4/4), à qual não pôde comparecer. Em seu discurso, ele falou da experiência de trabalhar por oito anos com Nísia, na Fundação e no Ministério. “Foi a chefia mais austera que já tive na minha vida. A sua integridade é contagiosa e o seu sentido de urgência lembra que a gente tem uma responsabilidade muito grande com a população, que tem pressa”, disse Mario Moreira.

A vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação, Cristiani Vieira Machado, elogiou a forma e a alegria de trabalhar da ex-ministra e se dirigiu aos estudantes presentes com uma mensagem. “É maravilhoso trabalhar pela ciência, é maravilhoso trabalhar pelo SUS, é maravilhoso pelos valores. Isso exige paixão, muita dedicação e responsabilidade, sabendo que nosso trabalho pode fazer diferença para as pessoas, para a população brasileira”, discursou.

Marly Cruz, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), que assumirá a VPEIC neste segundo mandato do presidente Mario Moreira, também compôs a mesa. “Quero agradecer por tudo o que você fez como presidente e como ministra, mostrando pra gente que a saúde é global e que precisa ser inclusiva. Nísia mostrou o quanto era possível acreditar, investir, fazer, mesmo que estivéssemos diante de situações muito adversas”, disse.

A pesquisadora lembrou da criação de duas assessorias no ministério, de Territórios e Periferias, e de Equidade Racial em Saúde. “Começou a trazer a estratégia de saúde sem racismo e isso é pensar em mudanças estruturais”, afirmou. Também compuseram a mesa e discursaram a coordenadora de Equidade, Diversidade, Inclusão e Políticas Afirmativas, Hilda Gomes; a Coordenadora Geral Adjunta de Educação Stricto Sensu, Isabella Delgado; o presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz (Asfoc), Paulo Garrido; e o Associação de Pós-Graduandos da Fiocruz, Matheus Rodriguez da Silva.