Por que alguns pacientes de Covid-19 apresentam sintomas mais severos do que outros? Essa pergunta intriga a comunidade científica há cinco anos, quando a pandemia causada pelo vírus Sars-CoV-2 foi declarada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Embora a resposta ainda não esteja totalmente definida, uma pesquisa liderada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e publicada na revista científica BMC Infectious Diseases apresenta mais um elemento para solucionar o enigma, abrindo portas para o desenvolvimento de novas terapias e estratégias para prever casos graves da doença.
Amostras de sangue de 88 pessoas hospitalizadas no Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz) foram analisadas na pesquisa (Imagem: Max Gomes)
Analisando amostras de sangue de pacientes internados com Covid-19, o estudo detectou correlação entre a gravidade da doença e a desregulação do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) — um conjunto de proteínas, enzimas e outros mecanismos que regula a pressão arterial e a resposta inflamatória do corpo. Entre outros dados, as análises identificaram expressão reduzida de proteínas que atuam como receptores do sistema SRAA em pacientes idosos e com comorbidades, como diabetes e hipertensão arterial, que desenvolveram quadros mais graves de Covid-19, com maior taxa de mortalidade.
O trabalho foi realizado por pesquisadoras do Laboratório de Aids e Imunologia Molecular e do Programa de Pós-Graduação em Medicina Tropical do IOC, com parceria do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz). Segundo as autoras, os resultados ampliam as evidências sobre o papel central dos receptores do sistema SRAA na evolução da Covid-19.
“Já sabíamos que um receptor do sistema SRAA estava diretamente envolvido na infecção pelo SARS-CoV-2. Uma proteína desse grupo, chamada ACE2, participa do mecanismo de entrada do vírus nas células. O patógeno se liga a esse receptor para invadir e infectar o organismo”, comenta a biomédica Thais Fernandes, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Medicina Tropical do IOC.
Para entender a influência do coronavírus no eixo renina-angiotensina-aldosterona, a equipe decidiu expandir a análise para todos os receptores desse grupo. “Além da proteína ACE2, tivemos a ideia de investigar o comportamento dos outros receptores do sistema durante a infecção. Observamos que vários deles — como MAS1 e ACE — apresentaram redução de expressão nos pacientes mais graves. Isso significa que a infecção compromete mecanismos essenciais de regulação do organismo, como a inflamação e a função vascular, o que agrava os sintomas, tanto na fase aguda quanto a longo prazo”, complementa.
Outro destaque do artigo é a constatação de que o sistema SRAA permanece desregulado por um longo período, o que pode ajudar a explicar os sintomas da chamada ‘Covid longa’.
“Esperávamos que o sistema SRAA já estivesse regulado após 300 dias, na segunda etapa das amostras, mas não. Os dados indicam uma persistência do vírus no organismo devido ao prolongamento da desregulação do sistema”, diz a pesquisadora do Laboratório de Aids e Imunologia Molecular do IOC, Dalziza Victalina de Almeida, que orientou a pesquisa.
Menos receptores e maior risco
A pesquisa analisou amostras de sangue de 88 pessoas hospitalizadas no Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz), tanto na fase aguda da Covid-19 quanto cerca de 300 dias após o início dos sintomas. Para fins de comparação, amostras de 20 indivíduos saudáveis também foram incluídas nos estudos.
Os resultados mostram que a infecção pelo coronavírus, por si só, tem a capacidade de reduzir a presença de receptores do sistema SRAA, especialmente na fase aguda. Além disso, a doença tende a ser ainda mais grave em pacientes que já apresentavam taxas naturalmente reduzidas dessas moléculas, como pessoas idosas ou com comorbidades — como diabetes e hipertensão arterial.
Nesses grupos, receptores como ACE2 e MAS1, que ajudam a controlar a inflamação e a saúde dos vasos sanguíneos, estão em número bem menor do que o normal, tanto na fase aguda quanto meses depois da infecção. Mudanças significativas na expressão de microRNAs (miRNAs) — pequenas moléculas que regulam a expressão gênica — também foram identificadas em pacientes com sintomas severos, o que reforça o impacto da infecção sobre os mecanismos reguladores do corpo.
A descoberta ajuda a responder por que indivíduos idosos e com comorbidades têm maior risco de desenvolver sintomas mais graves de Covid-19. Com base nos achados, as pesquisadoras sugerem que receptores como ACE2 e MAS1 podem ser protagonistas de novas estratégias terapêuticas contra o agravo.
“Criar terapias específicas para regular a expressão de miRNAs e consequentemente de receptores SRAA pode trazer uma nova luz para o tratamento da Covid-19. Isso permitiria criar medicamentos e intervenções mais direcionadas e com menor impacto em outras funções do organismo, que já podem estar fragilizadas devido à doença”, conclui Thais.