O LideraGOV 4.0 contou com uma turma de 51 alunos negros. Foto: Arquivo pessoal
Mychelle Alves Monteiro e Soraya Santos de Assis, servidoras da Fiocruz, concluíram, no dia 28 de agosto, o programa LideraGOV 4.0, uma iniciativa do governo federal voltada para a formação de líderes na gestão pública. Esta quarta edição do projeto foi marcada pela participação exclusiva de pessoas negras, destacando a importância da representatividade em um país com uma população majoritariamente negra (55,5%), mas onde apenas 36,1% dos cargos de liderança no serviço público federal são ocupados por esse grupo, de acordo com dados divulgados pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI).
O projeto é fruto de uma parceria entre o MGI e a Escola Nacional de Administração Pública (Enap), voltado para o desenvolvimento de líderes da administração pública federal. A turma de 2024 contou, ainda, com a colaboração do Ministério da Igualdade Racial (MIR), fazendo parte da proposta Formação e Iniciativas Antirracistas (FIAR), que tem o intuito de criar, executar e promover atividades e projetos de qualificação e desenvolvimento de competências no combate ao racismo e na promoção da igualdade racial no âmbito da gestão pública.
Realizada no dia 29 de agosto, a cerimônia de encerramento do curso contou com a participação de Mychelle e Soraya, além das servidoras da Fiocruz Flavia Silva, Hilda Gomes e Priscilla Ferraz, que participaram da edição como mentoras. No evento, foram realizadas uma mesa formada pela secretária executiva do MGI, Cristiane Mori, e a secretária do MIR, Márcia Lima, e uma conferência magna com a ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Edilene Lobo. A programação teve como tema “o desenvolvimento de lideranças negras e o impacto na melhoria dos serviços para a sociedade".
Da direita para a esquerda: as alunas Mychelle Monteiro e Soraya Santos; e as mentoras Flavia Silva e Priscila Ferraz. Foto: Arquivo pessoal
Mychelle Monteiro ingressou na Fundação em 2003, no cargo de técnica de laboratório no Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS). Para ela, que é chefe do Laboratório de Medicamentos, Cosméticos e Saneantes do INCQS, o QuilomboGOV – como foi apelidado por seus alunos – “representa um importante passo em direção à reparação histórica que o nosso país ainda precisa realizar. No entanto, essa é apenas uma etapa. É fundamental que a população negra, que compõe 55,4% da população, possa estar representada em todos os espaços de liderança e poder, que por séculos nos foram negados. A diversidade e a promoção de equidade precisam estar presentes nos espaços de construção de políticas públicas, e a população negra não está presente nas tomadas de decisão do país.”
A diretora executiva adjunta da Fundação, Priscila Ferraz, que foi mentora de Mychelle no programa LideraGOV, comenta sobre suas perspectivas para o futuro desses novos líderes do serviço público para a instituição. “A Fiocruz valoriza profundamente a formação de suas lideranças. Temos um extenso trabalho voltado ao desenvolvimento gerencial através da nossa Escola Corporativa. Por isso, é muito significativo e um orgulho para a instituição ver duas servidoras da casa, mulheres negras, com grande potencial, participando de um programa de formação de excelência”, celebra. “Elas trazem não apenas o conhecimento adquirido no curso, mas também a experiência prática, o fortalecimento da rede de contatos com outras lideranças do setor público e o compartilhamento de desafios e soluções. Tudo isso é de grande relevância para a Fundação".
As servidoras da Fiocruz se destacaram entre as 50 melhores das 403 candidaturas. Foto: Arquivo pessoal
Soraya Santos de Assis entrou na instituição no ano de 2012 na função de analista de gestão em saúde e passou por diversos setores até conquistar um cargo na gestão administrativa da Coordenação de Cooperação Social da Presidência. A servidora afirma que “o primeiro impacto do programa foi a sensação de estar junto de pessoas negras, não sermos minoria e reconhecer as nossas potências – questão que não reflete a realidade nos espaços de trabalho”. Soraya ainda reflete que “a troca de vivências, a generosidade na identificação dos pontos fortes entre os parceiros e a postura de cooperação têm potencial para valorizar a inovação, a partir do conhecimento da população dos territórios e a sabedoria ancestral.”
Para a coordenadora-geral de Administração da Fiocruz, Flávia Silva, mentora de Soraya no projeto, “o programa representa um marco histórico tanto para os participantes quanto para a administração pública brasileira.” Ela ressaltou o desempenho das servidoras da Fundação, que se destacaram entre as 50 melhores das 403 candidaturas. “Em uma edição comum, provavelmente menos de um terço dos candidatos seriam negros. Esta oportunidade serve como uma vitrine, destacando profissionais qualificados para ocupar diversas posições de liderança. Além disso, demonstra a outros profissionais que é possível alcançar novos patamares, independentemente de sua origem. Ainda há muito a ser feito, mas este é um passo importante”, conclui.
Temas das aulas
O curso totaliza 120 horas de atividades formativas distribuídas ao longo de nove meses, além de 20 horas adicionais de mentoria, dividido em três blocos principais: liderando a si mesmo, liderando equipes e liderando organizações. Nesta edição, o primeiro bloco discutiu temas como igualdade racial e de gênero nos cargos de liderança da administração pública federal, destacando seu impacto nas políticas públicas e no desenvolvimento do país. Também foram abordados assuntos como liderança, produtividade e qualidade de vida; competências essenciais para a realização liderança; autoconhecimento e autoliderança; e fundamentos da gestão humanizada de equipes.
O segundo, que foca na liderança de equipes, enfatizou temas como conhecimento do negócio público; ciclo de políticas públicas; equidade racial e de gênero no ambiente organizacional; gestão da produtividade e resultados; prática de gestão orientada para resultados; inovação e condução de mudanças; comunicação estratégica para líderes; introdução à negociação e gestão de conflitos; e engajamento de indivíduos e equipes para alcançar resultados.
Já o terceiro bloco explorou temas como enquadramento e resolução de problemas públicos; gestão baseada em evidências e tomada de decisão; prototipagem de soluções para desafios complexos; governança e políticas públicas; gestão de crise; estratégias de comunicação em cenários de crise; introdução ao pensamento de futuros; e prospecção de cenários e conexão de lideranças, com foco na liderança de organizações.
"Mesmo conscientes, enquanto mulheres negras no Brasil, de que estamos na base da pirâmide social e em condições mais vulneráveis, obtivemos com as disciplinas as evidências das desigualdades e aprendemos conceitos relacionados a raça, gênero, poder e interseccionalidades, como estereótipos, imagens de controle, discriminação, racismo, sexismo e exclusão, demonstrando como barreiras organizacionais podem levar à sub-representação de lideranças”, explicou Mychelle Monteiro.
Livro ‘Mulheres Negras no Serviço Público’
A parceria entre o MIR, o MGI e o Enap na quarta edição do programa LideraGOV resultou na produção do livro Mulheres Negras no Serviço Público: Escrevivências que Transbordaram pelo Atlântico, que reúne histórias inspiradoras das participantes desta turma do projeto. O livro conta com a participação de 16 mulheres negras em cargos públicos e pode ser conferido na página do Ministério da Igualdade Racial.
Mychelle Monteiro foi uma das autoras da publicação, escrevendo o capítulo Trajetória de Uma Menina Negra Até Chegar a Pesquisadora em Saúde Pública da Fiocruz. No texto, ela conta sua história desde antes de seu nascimento até o momento em que passa em um concurso da Fiocruz para pesquisadores em saúde pública, se retratando como “uma menina negra que ousou sonhar.”
“Quando avaliamos o quantitativo de servidores públicos federais, as mulheres negras estão em minoria. Realizar um livro sobre as trajetórias de mulheres negras no serviço público é uma forma de inspirar novas gerações a ver que é possível ocupar esses espaços, e que possamos em breve reverter esse quadro”, explica Mychelle.
Legado
Os formandos foram chamados de QuilomboGOVers. Foto: Arquivo pessoal
Para a coordenadora de Equidade, Diversidade, Inclusão e Políticas Afirmativas da Fiocruz, Hilda Gomes, a contribuição desses novos líderes para a transformação da administração pública é não apenas positiva, mas também necessária e estratégica. “É essencial mantermos a perspectiva do ‘esperançar’, como dizia Paulo Freire, que envolve não apenas esperar pela mudança, mas atuar ativamente para promover uma transformação social significativa.”
Mychelle ressalta que o programa proporcionou as ferramentas necessárias para exercerem a liderança no serviço público: “Agora, é hora de utilizarmos esse conhecimento, habilidades e competências para construir um futuro mais justo e equânime para o Brasil. O legado que fica é que abrimos e pavimentamos caminhos para que novas lideranças negras sejam potencializadas e tenham oportunidades para garantir um serviço público mais diverso e com a cara do Brasil.”
Soraya completa esse pensamento, dizendo que “(o legado) é possibilitar que mais pessoas negras estejam nesses espaços e que, além de representação, os resultados do serviço público sejam efetivos para a população brasileira.”