Fioflix Resenha: Horta Viva

By Por: Madu Negreiros (estágio supervisionado VideoSaúde Fiocruz)
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O cinema pode ser um refúgio para mentes turbulentas. A Fioflix - com seu catálogo em acesso livre - é uma maneira de nos aproximar ao cinema documental e democratizar este acesso. Em seu catálogo encontram-se filmes que espelham esta intenção de democratização de um abrigo em meio às turbulências de um ambiente, muitas vezes, inóspito. Em Horta Viva este refúgio é verde e repleto de vida.

Em seus primeiros minutos, uma caótica ambientação nos transporta à Comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. As buzinas dos carros, o chiado dos trilhos do trem, as vozes sobrepostas e o vento desordenado. Todos esses sons conversam com as imagens dos grafites nas paredes, dos lixos a céu aberto e dos cabos de eletricidade que fazem pontes por entre os postes. Em um dos muros desenhados, lê-se “as pessoas mais felizes não têm o melhor de tudo, elas apenas fazem o melhor com tudo que têm”. É uma frase que representa, sucintamente, o local mostrado a seguir - que quebra a ambientação caótica antes estabelecida. Como um oásis verde em um deserto de concreto, as imagens da Clínica da Família Anthidio Dias da Silveira quebram o cinza de uma região em estado de vulnerabilidade em razão da violência. Os sons desordenados dão lugar ao cantar dos passarinhos e a uma trilha sonora leve e animada. “Como se fosse uma tela branca estéreo, um hospital ou uma unidade de saúde como essa, é como se você desse uma pincelada com uma cor de tinta”.

Esta clínica da família assemelha-se a uma ilha verde e frutífera justamente pela sua abordagem única através de projetos sociais. É nela que se desenvolveu uma horta voltada para a saúde tanto da população quanto dos profissionais que ali trabalham. "Tira um pouco daquela dureza de uma unidade de saúde, traz para a gente um bem-estar seja no visual seja no dia a dia, oxigena a gente de muitas formas, não só da forma literal”.

Horta Viva nos apresenta a uma iniciativa que, à primeira vista, parece simples, mas que mudou por completo a maneira como os frequentadores da clínica lidam com a saúde. A grande protagonista dessa história, além, obviamente, da horta, é a Dona Gê: uma senhora que cuida das pessoas tão bem quanto cuida das plantas de sua horta. “Eu não estava preocupada com a pandemia, estava preocupada com a minha horta”, disse ela ao relembrar o momento em que precisou ficar “de castigo em casa”, como ela mesma disse. Foi nesse momento que a horta se tornou, não apenas um refúgio daquela realidade, mas também de um contexto histórico acerca da saúde pública global. Mas, para o alivio de Dona Gê, a horta continuou a ser muito bem cuidada mesmo na sua ausência. “Era comum você ver médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem presentes na horta ajudando o processo da horta e fazendo grupos na horta. Era um espaço coletivo que pertencia a todo mundo”.

A saúde aqui é compreendida para além do óbvio. Ela refere-se aos tratamentos comuns de uma clínica, mas também ao impacto do ambiente no bem-estar das pessoas. A alimentação, os cheiros, os sons e o cuidado transformam de forma sorrateira a realidade daquelas pessoas. “Aqui não é só lugar de pessoas doentes aqui é um lugar para a vida, para a pessoa se alegrar e ver que tem condições dela estar usando um chá desses para melhorar”.

A horta tornou-se não apenas um “plus” à saúde, mas sim uma nova maneira de encarar as unidades de atenção básica em saúde como um todo. Ela transformou-se em algo intrínseco àquele ambiente. O cheiro, sons e energia da horta moldam a maneira como a clínica funciona no geral. Os próprios profissionais da saúde se tornaram “agricultores” e agora fazem parte daquele ecossistema para além de suas funções originais. “Eu nunca tinha trabalhado com horta, mas eu falei ‘cara vou ajudar a cuidar porque é uma coisa benéfica para a população’”, disse um dos profissionais de saúde envolvidos no projeto. O cuidado aqui não mudou a vida somente dos pacientes, mas dos profissionais também. Eles são aqueles que dedicam suas vidas a um ofício que os obriga a passar muito tempo fechados em consultório, lidando com uma realidade muito difícil. A horta tornou-se um respiro para eles também.

Sendo a horta uma ilha verde, o oceano a sua volta também se faz presente nesta narrativa. A violência na Comunidade do Jacarezinho é posta em contraponto à paz proporcionada pela horta, como se ela realmente fosse um refúgio em meio ao caos. É abordado também, como alguns dos problemas de saúde podem ser frutos da violência, e como a solução pode ser a horta e seus benefícios fitoterápicos.

"Aqui nós lidamos com uma comunidade extremamente vulnerabilizada onde o conceito de saúde vai ser atravessado por muitas camadas”. É nítido como o cuidado com o paciente precisa ser detalhista ao enxergar não apenas o seu diagnóstico como também o seu contexto socioespacial. Ao proporcionar um “pequeno mundo verde dentro de uma clínica” - como é dito ao longo do filme - a horta, ao ser cuidada pelos profissionais de saúde, cuida dos frequentadores da clínica.

O cuidado é o sentimento que nos perpassa ao longo dos 22 minutos de exibição. É perceptível como o carinho através do qual as plantas cresceram é o que faz a diferença na vida das pessoas daquela comunidade. A barreira entre consultório e paciente é quebrada na construção de um ambiente vital para a vida. Mesmo após a exibição dos créditos finais, o carinho de Dona Gê - não só pela sua horta, como pelas pessoas também - nos aquece o coração. Ouvimos apenas a sua voz em um recado de áudio no qual ela diz, com carinho: “meu amigo querido, você precisa voltar a nossa horta!”.

Ao mesmo tempo que ela diz estas palavras, a imagem de plantinhas crescendo em um vídeo acelerado surge ao fundo. Dona Gê rega não só as plantas, mas as relações também. Amizades são cultivadas naquele ambiente, é isso que traz vida ao espaço da saúde. Para assistir Horta Viva e outros 500 filmes sobre saúde, ciência e tecnologia acesse a Fioflix.