Pesquisas em bioengenharia no IOC/Fiocruz avançam no combate ao câncer e Chagas

Por
Maíra Menezes (IOC/Fiocruz)*
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Minicoração: cultura 3D de células cardíacas apresenta contrações, entre outras características do órgão. Vídeo: Seydel e colaboradores, Biomedicines, 2024

Pesquisas com base em bioengenharia desenvolvidas no Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) abrem possibilidades inovadoras na busca de tratamentos para câncer e doença de Chagas.

Os estudos têm como ponto de partida a criação de culturas de células tridimensionais (3D), chamadas de esferoides ou organoides, capazes de reproduzir características de tecidos biológicos.

O câncer e a doença de Chagas estão no alvo de pesquisas com esta tecnologia. Entre os resultados mais recentes, está o desenvolvimento de um modelo para testes de terapias personalizadas contra o câncer, chamado de quimiograma tumoral.

Também está em andamento um trabalho que aponta o potencial de um fármaco para tratamento da fibrose cardíaca associada à infecção pelo parasito Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas.

“A expertise em bioengenharia tecidual é uma vantagem para estudos sobre resposta terapêutica e mecanismos fisiopatogênicos. Os esferoides reproduzem o que ocorre no tecido in vivo de forma mais próxima da realidade do que uma cultura de células bidimensional em monocamada”, explica a pesquisadora do Laboratório de Virologia e Parasitologia Molecular e atual vice-diretora de Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Inovação do IOC, Luciana Garzoni, que está à frente dos estudos.

Terapia personalizada 
O projeto de desenvolvimento do quimiograma tumoral completa dez anos em 2025. A iniciativa começou em 2015, durante pesquisa de doutorado desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Biologia Celular e Molecular do IOC pela atual pós-doutoranda do Instituto Laura Lacerda Coelho, sob supervisão de Luciana.

Para o teste, organoides tumorais são produzidos em laboratório a partir de células isoladas de fragmentos de tumores. Colocadas em placas de cultura, essas células se reorganizam espontaneamente em estruturas tridimensionais, formando microtumores.

Como reproduzem características morfológicos e funcionais de tumores, podem ser utilizados para avaliar o poder de ação de diferentes medicamentos, apontando aqueles com melhor desempenho contra o tumor específico dos pacientes.  

Na imagem, esferoide tumoral apresenta núcleo necrótico, como observado no câncer. Foto: Gutemberg Brito


Segundo a pesquisadora, o objetivo é possibilitar a terapia personalizada, em busca de um tratamento mais eficaz. “O teste é um avanço no contexto da oncologia translacional, que busca aplicar avanços da pesquisa básica para solucionar desafios no diagnóstico e tratamento do câncer. Ainda que dois pacientes tenham o mesmo tipo de câncer, a forma como cada tumor responde à terapia pode variar. Neste cenário, a proposta do quimiograma tumoral é, a partir de amostra de células tumorais do próprio paciente, avaliar qual fármaco seria mais eficaz para o tratamento dele”, detalha.

De acordo com a pesquisadora, a metodologia para produção do quimiograma tumoral foi testada em testes pré-clínicos usando células coletadas diretamente de tumores de animais, considerados como modelos experimentais. Também foi validada com células humanas de linhagens tumorais, que são isoladas de pacientes e adaptadas para crescer continuamente em laboratório. Estes insumos são fornecidos por empresas especializadas e amplamente utilizados em pesquisas.

A inovação alcançou nível de maturidade tecnológica 6 (TRL 6), com demonstração de um protótipo totalmente funcional.

“Para avançarmos na tecnologia, precisamos iniciar os testes em larga escala em condições de boas práticas de laboratório (BPL), o que será feito ainda no primeiro semestre de 2025, usando células coletadas de tumores de pacientes”, ressalta a pesquisadora.

Recentemente o grupo publicou um estudo com base nessa metodologia, que reproduziu em laboratório o processo de metástase de tumor de mama, que ocorre quando o câncer se espalha pelo organismo.

Divulgado na revista científica ‘Biology’, o estudo mostrou que o modelo 3D reproduz a migração de células tumorais e a mudança de expressão de proteínas fundamentais para o início do processo metastático, de maneira similar ao que ocorre nos tumores em pacientes.

“As células epiteliais do esferoide adquirem características mesenquimais, tornando-se capazes de migrar e de se desprender do tumor. Esse é um dos processos envolvidos no desenvolvimento de metástases, quando as células tumorais se estabelecem em outros tecidos. Assim, temos um excelente modelo para avaliar novas drogas antimetastáticas”, relata Luciana.  

Equipe que atua nas pesquisas na área de bioengenharia sob supervisão de Luciana Garzoni (na foto, ao centro). Foto: Gutemberg Brito


O trabalho incluiu testes com o medicamento doxorrubicina, que é frequentemente utilizado no tratamento do câncer de mama e que apresentou importante efeito antimetastático, inibindo a transição epitélio-mesenquimal e a migração das células tumorais.

No IOC, o trabalho contou com parceria de cientistas dos laboratórios de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos; Pesquisa sobre o Timo; Patologia; e Epidemiologia das Malformações Congênitas. Também participaram pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Instituto Nacional do Câncer (Inca).

Segundo a pesquisadora, a próxima etapa é avançar no estudo clínico de caracterização do quimiograma tumoral como preditor de resposta terapêutica, em ambiente que simule as condições reais de uso, o que é previsto no projeto de pós-doutorado desenvolvido pela bióloga Gabriela Vieira.

Descobertas em minicorações 
Além das pesquisas em câncer, estudos sobre doença de Chagas têm avançado a partir de ensaios com organoides. Neste tipo de estudo, uma das principais vantagens do modelo tridimensional é reproduzir o processo de fibrose e hipertrofia que afeta o músculo cardíaco na forma crônica da doença de Chagas, como previamente demonstrado em artigos científicos publicados pelo grupo.

Em cerca de 30% dos pacientes, a presença do parasito e o processo inflamatório persistente no coração danificam o músculo cardíaco, o que leva ao desenvolvimento de fibrose, com a produção de cicatrizes. A cicatrização excessiva provoca modificações na arquitetura do tecido cardíaco, prejudicando seu funcionamento e pode ocasionar problemas como arritmia e insuficiência cardíaca.

Para compreender melhor esse processo e buscar novas terapias, as pesquisadoras desenvolveram um modelo de organoide chamado de minicoração, formado por células cardíacas. Com formato esférico, os organoides cardíacos são culturas celulares 3D capazes de contração espontânea e de interações celulares e moleculares similares às observadas no músculo do coração.

“Quando infectamos os minicorações com T. cruzi, conseguimos reproduzir o processo de fibrose não apenas no nível molecular, mas estrutural. Isso permite testar compostos para tentar bloquear ou reverter esse processo”, destaca Luciana.

Em experimentos com minicorações infectados pelo T. cruzi, o grupo já identificou compostos com atividade antifibrótica. A pesquisa mais recente foi realizada pela biomédica Clara Seydel, sob orientação de Luciana, durante o mestrado do Programa de Pós-graduação em Biologia Celular e Molecular do IOC. No trabalho, foi observado resultado positivo com um medicamento, que conseguiu reduzir a hipertrofia e a expressão de proteínas envolvidas na fibrose no tecido cardíaco.

“Esses resultados sugerem que o modelo apresenta grande potencial para o estudo de novas abordagens terapêuticas para o tratamento da fibrose cardíaca na doença de Chagas”, comenta Luciana. A pesquisadora acrescenta que o uso clínico dos medicamentos já testados ainda depende de outras etapas de pesquisa, incluindo testes em animais e pacientes.

Além disso, os minicorações podem contribuir para estudos sobre formação de vasos sanguíneos cardíacos, uma vez que as cientistas demonstraram que os organoides produzidos com células-tronco mesenquimais e células endoteliais desenvolvem vasos sanguíneos, indicando potencial para estudos no campo da cardiologia translacional.  

* Edição: Vinicius Ferreira